21.7.10

O Lado Direito



Crônica por Guilherme Dias. (Adaptação)
Todos os dias, pela manhã, o sol dorme mais do que eu e, em geral, o período entre a hora em que eu acordo e a hora em que eu acordo pra valer não existe. É tudo feito no piloto-automático: levanta da cama ao som de um chorinho no celular, toma um banho com o olho grudado de remela, coloca a lente, bota a roupa, bebe água, corta o queijo, passa a manteiga, guarda o pão na mochila, enrola a marmita no pano de prato, o garfo e a faca no papel-toalha, come uma banana, escova o dente, sai de casa. Saio à rua, dou bom dia à madrugada e vou esperar o ônibus na praia. Ah, o 996! Quase tão minha cama quanto a minha cama! Sentado do lado direito do ônibus, cruzo a baía e chego na Lagoa sem nem ver o tempo passar. No rádio, músicas antigas dos “Clássicos MPB” ou dores de cravos e violinos na “Áurea Música”. Saio do ônibus, tomo um café no Jóia, leio o jornal na banca e meu dia, enfim, começa.
Às vezes, porém, quando o sono me abandona mais cedo, eu consigo usufruir do lado direito como ele merece. Na janela do ônibus, me perco em devaneios em meio às músicas do rádio e observo a paisagem como um todo e os elementos que a compõem individualmente. E é aí que está a graça do lado direito.
O lado direito me mostra as pessoas na rua, esperando o ônibus. Algumas felizes, algumas tristes, algumas cansadas, poucas dispostas, a maioria no piloto-automático. O lado direito me dá o frescor da manhã dos rostos de tantas belas meninas esperando seus ônibus para a faculdade; me dá o amargo da realidade de tantos trabalhadores acordando cedo para trabalhar muito e ganhar pouco; me dá o cansado de tantos jovens estudantes que só queriam mais cinco minutinhos de cama quente; me mostra crianças esperando o sinal da escola enquanto paqueram meninas no muro sob a embriaguez de seus primeiros hormônios da adolescência; e me dá, enfim, em reflexo, o rosto cansado de um jovem que observa o lado direito. Com sono, mas com atenção. O lado esquerdo é impessoal, é auto-suficiente. Só mostra carros, prédios. O lado esquerdo não tem amigos.
O lado direito me mostra a Baía de Guanabara. Ah, que vantagem do lado direito! Na ida e na volta, o lado direito me dá o mar. E como isso me agrada! O lado direito me dá atobás mergulhando atrás de seu café da manhã e a majestade com a qual as garças vêm voando de seus ninhais atrás dos barcos pesqueiros. Me dá os trinta réis, migrantes, em sua infindável jornada pelos céus. Me dá as fragatas circulando, unidas, nas correntes ascendentes para um dia de planagem pelo azul carioca. Mergulhando ferozmente atrás de atobás distraídos, roubando peixes com a elegância de um bom malandro de mãos leves. Conto as fêmeas, peito branco. Conto os machos, gravata vermelha. Conto quantas vezes me perdi contando as fragatas. Perco a conta.
O lado direito, além das aves, me dá o nascer do sol. Sem força, sem pressa. Me dá seus primeiros raios como beijos de bom dia, esquentando o meu rosto que, colado no vidro, observa o dourado que as águas refletem alegremente. O lado esquerdo, por sua vez, é frio. As aves voam ao longe, escuras, sem a benção do sol. Voam frias, famintas, almejando um lado direito. O lado esquerdo é impiedoso com as aves! O lado esquerdo, avarento, rouba a poesia do mar.
O lado direito me dá ainda, de manhã, o Cristo. É ele quem me diz onde eu devo saltar do ônibus. Entrando na São Clemente, em Botafogo, o lado direito contorna o Corcovado e me mostra o cristo iluminado pelas luzes da manhã. Em geral são seis e meia, por aí. E o Cristo, de braços abertos, me mostra, pela sua posição, quando o Jardim Botânico está chegando. Eu agradeço a generosidade, salto do ônibus e vou tomar o meu café no Jóia. O dia começou. O lado esquerdo? Um tratante! Já me fez, mais de uma vez, passar do ponto e perder a hora da aula. Judas!
Lá pras cinco e pouca da tarde, voltando do Fundão (sim, do Fundão. Meu dia é corrido, tá pensando o quê?), o lado direito me dá o canal e o mangue. Como estão sujos, coitados! E ainda assim, como estão belos quando manchados de laranja pelo pôr do sol que a esfumaçada cidade proporciona. Ta aí a única vantagem da poluição: o pôr do sol enriquecido. O lado direito me dá a silhueta da Igreja da Penha acima da cidade que começa a acender suas luzes. Me dá o contraste da beleza da cidade com a pobreza na qual ela mergulhou. Me mostra o lado para o qual o Cristo dá as costas e me faz lembrar que, infelizmente, a cidade só é maravilhosa para alguns. E, logo após me dar um tapa na consciência, me conforta ao mostrar que o carioca, mesmo em situações críticas sabe viver o lado bom da vida. Crianças se divertem soltando pipa nas lajes de suas casas e jovens jogam bola no campinho de areia enquanto as luzes da Maré se acendem. O lado esquerdo, por sua vez, está preocupado em mostrar o engarrafamento da Avenida Brasil e a escuridão do cemitério do Caju. O lado esquerdo é cinza em suas luzes de automóveis vermelhas e amarelas.
Chegando a Niterói, o lado direito me mostra o MAC, símbolo da cidade, como um disco voador rajado pela luz refletida da água sob a qual paira. Me mostra Itapuca, as ondas, as marés, as pedras, o Rio. E que visão do Rio o lado direito me dá ao chegar a Icaraí! E que orgulho de morar onde eu moro! O lado direito, quanto mais eu rodo pelo mundo, me faz gostar do meu lugar.. Me faz pensar se seria possível viver em qualquer outro lugar onde os lados direitos não fossem tão direitos. Acho que seria difícil viver em um lugar sem essa poesia. O dia a dia pede poesia. O lado direito me dá.



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6 comentários:

  1. muito legal a crônica...gostei!
    Mas acho que era para trocar no 3º paragrafo
    na 7ª linha a palavra cansado por cansaço, né não?

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  2. Camba, não sabia desse seu dom com as palavras. Não sabia dessa percepção nada míope. Amei e um dia muito direito para vc. Beijos, Dora.

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  3. Vc é o cara primo! Nosso orgulho!

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  4. DEMAIS, Du!!! DEMAIS!!!! Muito bom mesmo!!! Me supreende a cada post.

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